A gente sempre acha que vai passar imune a tudo de mau que acontece nessa vida. Toda aquela desgraceira que a gente vê na imprensa, todas essas doenças da pós-modernidade, todas essas epidemias globais, toda essa crise moral – tudo isso só acontece com os outros, com os pais dos outros, com os amigos dos outros, com os filhos dos outros.
A gente embebeda-se e volta da discoteca a conduzir, mas só sofre acidente e fica tetraplégico aquele moço que participou do BBB. A gente usa drogas até virar os olhos, mas só morre de overdose líder de banda de rock dos anos 90. A gente odeia o nosso trabalho e mesmo assim trabalha vinte e quatro por sete, mas depressão e ansiedade é tudo doença de gente rica.
E essa foi sempre a sensação que me acometeu com relação às crises da idade. Acontecia com todos, menos comigo. Porque eu era desse tipo invencível. Não tinha bebedeira na quinta que me impedisse de trabalhar na sexta, não tinha dúvida que me tirasse do meu eixo.
Eu poderia até odiar o meu trabalho, mas o dinheiro e o status compensavam. Eu poderia até sentir falta da comidinha e do carinho de mãe, mas a liberdade de morar sozinha, sem horário para chegar e sem satisfações para dar, superava toda e qualquer saudade. Eu poderia até desejar uma companhia romântica para um sábado à noite, mas o descompromisso de poder pegar quem eu bem entendesse colocava qualquer romance no chinelo. Eu tinha vinte e poucos e estava tudo bem. Tudo ótimo. Tudo lindo. Tudo maravilhoso.
Até que eu cheguei aos 26. E a vida bateu. E foi forte. Porque aos 26 anos, a gente já está mais perto dos 30 do que dos 20. Aos 26, há amigos a casar, amigos a ter filhos, amigos a separarem-se. Há de tudo. Mas desamparo é o que mais há. Porque aos 26, bom é só o passado. De resto, é tudo mais ou menos – especialmente o trabalho. E muito embora o mundo esteja cheio de coachs que vieram de fábrica com apenas duas palavras programadas na memória – “gratidão” e “luz” – e que vivem dizendo que nunca é tarde para recomeçar, aos 26 é tarde. E cedo ao mesmo tempo. Tarde porque alguns pares de anos já foram para o lixo desde que a gente se formou numa profissão bizarra que não tem nada a ver com a gente. E talvez um pouco cedo para não insistir mais um pouco e, finalmente, se encontrar – vai que é uma questão de entrar na empresa certa? Tarde porque a nossa disposição para colocar a mochila às costas e sair pelo mundo não é mais a mesma que a gente tinha aos 20. E cedo porque essa disposição é, certamente, maior do que a que a gente vai ter aos 35. Tarde porque a gente já construiu laços que nos fazem ficar. E cedo porque esses laços, muito provavelmente, ainda não viraram nós.
Todo esse sofrimento porque eu ainda nem mencionei o quesito beleza. Ser jovem tem algo de belo que eu, definitivamente, não entendo. Porque por mais que o meu corpo tenha mudado muito pouco e o meu rosto ainda não tenha, de facto, envelhecido, a beleza dos 20 e pouquinhos se esvaiu ralo abaixo, bueiro adentro, vida afora.
O corpo ainda está esbelto e de fora – mas há um quê de sofrimento, porque é mais exercicio e menos hidratos de carbono para todo esse milagre. O sorriso, agora, é contido – além de os motivos já não serem tantos, sorrir demais desvela as rugas. O olhar ganhou sabedoria, mas também um tanto de tristeza – nada no mundo é mais real do que o ditado popular que diz que “a ignorância é uma bênção”.
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Porque envelhecer pressupõe amadurecer. Amadurecer pressupõe saber mais. E saber mais pressupõe se decepcionar mais, sofrer mais e dormir menos. Desde criança, todos falam que eu sempre fui madura. E talvez seja por isso que os 26 tenham me apodrecido: amadureci demais. Estou com um gosto mau. De maçã farinhosa, de tomate passado, de alface velha. De banana cheia de manchas. A vontade é deitar em posição fetal e chorar uns pares de dias. De fingir que ainda é infância, largar o ginásio e queimar calorias brincando de pique-esconde. De entrar numa máquina do tempo e voltar. Aos vinte e poucos, aos quinze, aos sete, aos três. Mas gente madura não pode fazer isso. Gente madura aguenta o tranco. Gente madura não chora. Gente madura encara tudo de frente, de peito aberto e sem colete à prova de balas. Apenas à espera o próximo – e fatal – tiro à queima-roupa. Que, com sorte, mata essa crise de identidade. E com azar, pega em cheio. No coração.