Idosos órfãos de filhos vivos…
Atenção e carinho estão para a alegria da alma, como o ar que respiramos está para a saúde do corpo. Nestas últimas décadas surgiu uma geração de pais sem filhos presentes, por força de uma cultura de independência e autonomia levada ao extremo, que impacta negativamente no modo de vida de toda a família. Muitos filhos adultos ficam irritados por precisarem acompanhar os pais idosos ao médico, aos laboratórios. Irritam-se pelo seu andar mais lento e as suas dificuldades de se organizar no tempo, a sua incapacidade crescente de serem ágeis nos gestos e decisões.
Nasceu uma geração de ‘pais órfãos de filhos’. Pais órfãos que não se negam a prestar ajuda financeira. Pais mais velhos que sustentam os netos nas escolas e pagam viagens de estudo fora do país. Pais que cedem seus créditos consignados para filhos contraírem dívidas em seus honrados nomes, que lhes antecipam herança. Mas que não têm assento à vida familiar dos mais jovens, seus próprios filhos e netos, em razão – talvez, não diretamente de seu desinteresse, nem de sua falta de tempo – mas da crença de que seus pais se bastam.
O desespero calado dos pais desvalidos, órfãos de quem lhes asseguraria conforto emocional e, quiçá material, não faz parte de uma genuína renúncia da parte destes pais, que ‘não querem incomodar ninguém’, uma falsa racionalidade – e é para isso que se prestam as racionalizações – que abala a saúde, a segurança pessoal, o senso de pertença. É do medo de perder o pouco que seus filhos lhes concedem em termos de atenção e presença afetuosa. O primado da ‘falta de tempo’ torna muito difícil viver um dia a dia em que a pessoa está sujeita ao pânico de não ter com quem contar.
Desde os poucos minutos dos sinais luminosos para se atravessar uma rua, até as grandes filas nos supermercados, a dificuldade de caminhar por calçadas quebradas e a hesitação ao digitar uma senha de computador, qualquer coisa que tire o adulto de seu tempo de trabalho e do seu lazer, ao acompanhar os pais, é causa de irritação. Inclusive por que o próprio lazer, igualmente, é executado com horário marcado e em espaço determinado.
Nas salas de espera veem-se os idosos calados e os seus filhos entretidos nos seus jornais, revistas, tablets e telemóveis. Vive-se uma vida velocíssima, em que quase todo o tempo do simples existir deve ser vertido para tempo útil, entendendo-se tempo útil como aquele que também é investido nas redes sociais. Enquanto isso, para os mais velhos o relógio gira mais lento, à medida que percebem, eles próprios, irem passando pelo tempo. O tempo para estar parado, o tempo da fruição está limitado. Os adultos correm para diminuir as suas ansiosas marchas em aulas de meditação. Os mais velhos têm tempo sobrante para escutar os outros, ou para lerem seus livros, a Bíblia, tudo aquilo que possa requerer reflexão. Ou somente uma leve distração.
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Os idosos leem o de que gostam. Adultos devoram artigos, revistas e informações sobre o seu trabalho, em suas hiper especializações. Têm que estar a par de tudo just in time – o que não significa exatamente saber, posto que existe grande diferença entre saber e tomar conhecimento. Já, os mais velhos querem mais é se livrar do excesso de conhecimento e manter suas mentes mais abertas e em repouso. Ou, então, focadas naquilo que realmente lhes faz bem como pessoa. Restam poucos interesses em comum a compartilhar. Idosos precisam de tempo para fazer nada e, simplesmente recordar. Idosos apreciam prosear. Adultos têm necessidade de dizer e de contar. A prosa poética e contemplativa ausentou-se do seu dia a dia. Ela não é útil, não produz resultados palpáveis.
Ensaio da psicóloga Ana Fraiman – Publicado originalmente, com o título “Idosos órfãos de filhos vivos – Os novos desvalidos”, em seu site oficial onde você pode ler este ensaio na íntegra e outros textos superlativos de Ana Fraiman.